domingo, 17 de fevereiro de 2008

Somos o que somos..

Somos o que somos.. Nada mais importa..
Que importa que haja definição para o ser.. para o existir..
Basta ser.. basta respirar fundo.. basta viver..


Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.


Alberto Caeiro

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Destino..



Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia
que não pára de mudar de direcção.

Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti.
Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te,
seguindo no teu encalço.
Isto acontece uma vez e outra e outra,
como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer.
Porquê?
Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada,
sem nada que ver contigo.
Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti.
Por isso, só te resta deixares-te levar,
mergulhar na tempestade,
fechando os olhos e tapando os ouvidos
para não deixar entrar a areia
e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra.
Aqui não há lugar para o sol nem para a lua;
a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido.
Existe apenas areia branca e fina,
como ossos pulverizados,
a rodopiar em direcção ao céu.
É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.

Haruki Murakami

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Cidade deserta..


Na cidade deserta percorro os teus passos,
os teus sonhos esquecidos..
Revejo a névoa do que outrora fui
e que perdi na imensidão.. da sombra.. da vida..
Ouvi dizer que na cidade deserta
percorres os muros, tacteando as curvas do meu corpo
e de olhos fechados inspiras o cheiro da minha pele,
e nesse instante ouves alguém dizer
que um amor não vivido,
não intensamente sentido,
nunca nunca nunca nunca nunca nunca tem fim..

A cidade está deserta
e alguém escreveu o teu nome em toda a parte:
nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas.
Em todo o lado essa palavra,
repetida ao expoente da loucura!
Ora amarga, ora doce...
Para nos lembrar que o amor é uma doença,
quando nele julgamos ver a nossa cura...


quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Sempre.. para sempre..



Há amor amigo, Amor rebelde, Amor antigo, Amor de pele.
Há amor tão longe, Amor distante, Amor de olhos, Amor de amante.
Há amor de Inverno, Amor de Verão, Amor que rouba como um ladrão.
Há amor passageiro, Amor não amado, Amor que aparece, Amor descartado.
Há amor despido, Amor ausente, Amor de corpo e sangue.. bem quente..
Há amor adulto, Amor pensado, Amor sem insulto, mas nunca.. nunca tocado.
Há amor secreto, De cheiro intenso, Amor tão próximo, Amor de incenso.
Há amor que mata, Amor que mente, Amor que nada, mas nada
Te faz contente.. me faz contente.
Há amor tão fraco, Amor não assumido, Amor de quarto, Que faz sentido.
Há amor eterno, sem nunca, talvez..
Amor tão certo, que acaba de vez..
Há amor de certezas, que não trará dor..
Amor que afinal
amor.. Sem amor
O amor tudo,
Tudo isto, e nada disto
Para tanta gente acabar de maneira igual..
E recomeçar...
Um amor diferente
Sempre, para sempre


domingo, 6 de janeiro de 2008

Laura Brown.. o espelho.. a (im)perfeição..


Se a perfeição das coisas bastasse para que a felicidade fosse eterna, então o que seria da procura incessante de novas experiências?!..
Se num dia perfeito, numa casa perfeita, com a família perfeita, a simplicidade de um bolo de aniversário fosse imperfeitamente suficiente para que a insatisfação desvanecesse..

No espelho de Laura Brown, reflecte-se a repetição dos dias.. Não fosse um livro, essa hora quase completa em que se mergulha noutra vida e por breves momentos vive-se a história de outra pessoa..
Não fosse um livro.. um conto.. palavras.. letras ..
Não fosse o abstrair da realidade..
não fosse..
não fosse…
não fosse..as horas..




Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo.
Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto imaginámos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e difíceis.
Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã.. mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.

Michael Cunningham - As Horas

sábado, 5 de janeiro de 2008

Palavras.. em falta..


Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento,
Assim faltam os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade.
Mas, como a essência do pensamento não é ser dito mas ser pensado,
Assim é a essência da realidade o existir, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos..


Alberto Caeiro

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A Lentidão..


Há um elo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Evoquemos uma situação extremamente banal: um homem caminha na rua. De repente, quer lembrar.se de qualquer coisa, mas a lembrança escapa.lhe.
Nesse momento, maquinalmente, o homem atrasa o passo. Pelo contrário, alguém que queira esquecer um incidente penoso que acaba de viver acelera sem dar por isso o ritmo da sua marcha como se quisesse afastar.se depressa do que, no tempo, lhe estará demasiado perto.
Na matemática existencial, esta experiência assume a forma de duas equações elementares: o grau da lentidão é directamente proporcional à intensidade da memória; o grau da velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento.

Milan Kundera